A banalização dos indícios de autoria na decretação da Prisão Preventiva

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A prisão preventiva é uma medida cautelar prevista no Código de Processo Penal¹ para garantir a ordem pública, a instrução criminal e a aplicação da lei penal. No entanto, tem-se observado uma preocupante tendência de decretar prisões preventivas sem a devida análise dos indícios mínimos de autoria. Muitos juízes baseiam-se em suposições, resultando na prisão de inocentes e na violação de direitos fundamentais. Este artigo busca analisar criticamente essa prática, destacando suas implicações para os direitos fundamentais dos acusados e a presunção de inocência.

A Constituição da República prevê no seu artigo 5º, inciso LVII², que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Essa previsão reflete a importância de uma garantia que impede o Estado de restringir a liberdade do indivíduo, deixando claro que a presunção de inocência deve guiar as decisões judiciais, aplicando-se também à decretação da prisão preventiva.

Para realizar uma análise adequada da aplicação da prisão preventiva nos termos do art. 313 do Código de Processo Penal³, é imprescindível dividi-lo em duas partes. A primeira parte refere-se ao que a doutrina e a jurisprudência denominam periculum libertatis, que representa o perigo decorrente do estado de liberdade do sujeito passivo. A segunda parte, por sua vez, trata da prova da existência de um crime e dos indícios suficientes de autoria, sendo conceituada pela doutrina como fumus commissi delicti. (LOPES JR, 2023)⁴.

A decretação da prisão cautelar exige, conforme preconizado por Carnelutti⁵, a presença de uma probabilidade, que se traduz na existência de uma “fumaça densa e semelhante ao verdadeiro” (LOPES JR, 2023)⁶. No entanto, observa-se que, na prática processual, essa “fumaça densa” frequentemente se fundamenta em meras suspeitas oriundas de investigações superficiais e, por vezes, ilegais.

O fumus commissi delicti exige a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapasionado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e consequências apresentam como responsável um sujeito concreto. (LOPES JR, 2021).⁷

Destarte, ressalta-se a imperiosa necessidade de uma análise criteriosa e aprofundada por parte dos magistrados no tocante aos indícios de autoria ao decretar a prisão preventiva. A decretação dessa medida cautelar com base em meras suspeitas abstratas e desprovidas de elementos probatórios concretos não apenas compromete a integridade do processo penal, mas também pode resultar na injusta privação de liberdade de indivíduos inocentes, em flagrante violação aos princípios constitucionais da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana.

Na prática, muitos juízes têm banalizado esses indícios, como se eles não estivessem previstos na legislação brasileira. No Habeas Corpus 853.679 do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que conclusões que ainda estão no campo das suspeitas de autoria não são suficientes para fundamentar um decreto preventivo.

Não é raro observar investigações superficiais e acusações inseguras fundamentando prisões preventivas, resultando na prisão de inocentes. Embora a norma processual penal não exija prova incontestável da autoria do crime para a decretação da prisão preventiva, os indícios não podem ser meras suspeitas. (BRASIL, 2023)⁸

Apesar de essa tese ser frequentemente defendida por advogados, raramente é aceita pelos juízes de primeiro grau. Quando levada aos tribunais superiores, especialmente ao Tribunal de Justiça do Ceará, os desembargadores muitas vezes não conhecem da impetração, alegando que a questão não comporta acolhimento em sede de habeas corpus, por exigirem exame aprofundado do conteúdo fático-probatório. Dessa forma, o remédio constitucional torna-se inapto diante de uma flagrante ilegalidade.

Analisar os indícios de autoria como requisito para a decretação da prisão preventiva não é uma mera faculdade do julgador, mas sim um dever imperativo. A não observância desse requisito pode levar à prisão de diversos inocentes, resultando em graves violações de seus direitos fundamentais e à presunção de inocência. Somente com uma análise individual e minuciosa de cada caso, bem como a existência concreta de indícios de autoria, será possível chegar a uma prisão preventiva que seja tanto legal quanto justa.

Ao sair da prisão, ex-detentos enfrentam o desafio de recomeçar suas vidas, carregando a sombra do processo e o preconceito da sociedade em relação à sua ficha criminal. Conforme destaca Gomes (2019)⁹, “no momento de se candidatar a vagas de emprego para retomar a rotina, muitos empregadores se sentem receosos com o histórico” dos ex-detentos. Esse estigma social dificulta sobremaneira o processo de ressocialização, pois, ainda que sejam inocentes, nos registros constam antecedentes significativos das atividades cotidianas inerentes à vida em sociedade. Esses obstáculos acarretam prejuízos incalculáveis e perpetuam a marginalização.

A interpretação rigorosa dos indícios de autoria é fundamental para assegurar uma aplicação justa e proporcional da prisão preventiva. A banalização dessa exigência tem resultado na violação de direitos fundamentais e na perpetuação de injustiças dentro do sistema de justiça criminal. Portanto, é imperativo que o controle jurisdicional mais rigoroso seja exercido na prisão preventiva, garantindo que essa medida seja baseada em fundamentos concretos e não em meras suspeitas desprovidas de sustentação. Somente assim será possível proteger verdadeiramente os acusados e promover a justiça no âmbito penal.

Tatiane Magalhães

Advogada criminalista, idealizadora e co-fundadora da Academia de Criminalistas. OAB/CE 41.029.

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